Construção, de Chico Buarque de Holanda, tem quase meio século, e continua atual. É uma composição tão rica de significados, que se transformou em fonte inesgotável de questões de gramática, de literatura, de história em vestibulares, em concursos públicos e tantas outras provas.
O genial Chico Buarque de Holanda, ou Julinho da Adelaide, cresceu no terreno fértil da alta cultura. Chico nasceu na ilustre casa de Sérgio Buarque de Holanda, um grande explicador das raízes do pensamento brasileiro. As visitas que frequentavam a casa só poderiam ser ilustres também! Intelectuais como Antônio Cândido, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes. Escritores queridos como Manuel Bandeira, Jorge Amado, Fernando Sabino. Notáveis da MPB como Vinícius de Moraes, Toquinho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulo Vanzolini, além de João Gilberto, é claro, o criador da Bossa Nova, que foi cunhado do Chico.
… e o gênio deu à luz a Construção, uma joia da Música Popular Brasileira.
Construção é prédio em obra. Obra vem de opus. Opus virou ópera. Ópera, gênero dramático-musical, que nasceu das tragédias gregas.
No libreto desta ópera, Chico conta a história trágica de um obreiro, como tantos da construção civil, no Brasil. Enquanto a letra vai descrevendo a construção do prédio, descreve, também, a construção da sua própria estrutura poética. É pura metalinguagem.
O ritmo encontra apoio na métrica de seus versos, divididos em doze sílabas, todos coroados por proparoxítonas: máquina, príncipe, bêbado, tímido. Essas proparoxítonas colocadas sempre no final de cada verso, produzem efeito o melódico da rima. Metáforas e proparoxítonas constroem e desconstroem a rotina do pedreiro. A orquestra quebra a monotonia da repetição rítmica com buzinas estridentes que reclamam do corpo atrapalhando o tráfego, faz o ruído dos andaimes que não param de subir e descer. Os tons menores e o coro causam tensão.
Palavras repetidas, em ritmo também repetitivo, transmitem o tédio daquele cotidiano, dramático por natureza – Seus olhos embotados de cimento e lágrima. Naquele dia, porém, uma nuvem sombria paira sobre a cabeça do pedreiro. Chico construiu o mau presságio usando o advérbio de modo COMO, mais o verbo IR no imperfeito do subjuntivo: COMO SE FOSSE. O efeito é angustiante – Amou daquela vez como se fosse a última. E se for a última? A morte ronda…
Como na ópera, Construção se divide em atos. Todos dramáticos:
O primeiro ato é a Despedida:
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
O segundo ato é o Trabalho:
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
O terceiro ato é hora do Descanso:
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
O quarto ato é o Desenlace:
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Chico escancara a desumanização do pedreiro, visto pelo capitalismo como mera ferramenta. Vivo, ergue paredes; morto, só atrapalha. Sua morte, em pleno serviço, é um estorvo; não uma tragédia: – Morreu na contramão atrapalhando o tráfego / atrapalhando o público / atrapalhando o sábado.
E a narrativa recomeça. As mesmas estrofes voltam à cena; porém, com uma mudança de efeito: as proparoxítonas no fim dos versos vão se revezando como o cubo mágico, que forma um desenho diferente a cada girada.
Um dos resultados desse jogo é o surgimento do sagrado, pela simples troca da proparoxítona ‘único’ por ‘pródigo’. O Filho Pródigo é a mais conhecida parábola de Jesus. Tudo em Construção desumaniza o personagem; e os novos significados dão a impressão de que ele está enlouquecido. Mas este verso, surpreende com uma repentina aura bíblica que toca a família do pedreiro: – E cada filho seu como se fosse o pródigo.
A narrativa denuncia as condições precárias em que vive o eu lírico de Construção, representante de milhões de trabalhadores brasileiros, não só pedreiros. Sempre no mesmo ritmo, o autor conta 3 vezes a história. Na última, ele resume a ópera em uma única estrofe de 7 versos. A monótona repetição parece um lamento que reclama mudanças, mesmo sabendo que elas não virão.
De repente, a monotonia cessa! O ritmo fica intenso, nervoso. É o fim que se aproxima em 3 estrofes. O último verso dessas estrofes repete o agradecimento do mendigo que recebe uma esmola: – Deus lhe pague.
O trabalhador desta obra é um despossuído que denuncia a precariedade da sua vida fingindo agradecer o favor, a esmola de deixá-lo nascer, de deixá-lo sorrir, de deixá-lo respirar, de deixá-lo existir: – Deus lhe pague.
Agradece a cachaça que tem que engolir, agradece a desgraça, e a fumaça que tem que tossir, agradece os andaimes que tem que cair – Deus lhe pague.
E, por fim, agradece à carpideira, mulher contratada para chorar em seu velório, agradece pelas moscas bicheiras que vão devorar seu corpo, agradece a paz que só a morte lhe dará. – Deus lhe pague.
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